Uma carta ao senhor José Maria

Por Nayara Felizardo

Seu José Maria,

Foi com grande desprazer que li seu artigo publicado no Diário do Povo. Por isso resolvi escrever esta carta, que lhe encaminho por e-mail. Quero iniciar nossa conversa contando sobre um crime que ocorreu no Amazonas. Um homem de 55 anos foi preso tentando estuprar um bebê de menos de 2 anos. Nesse link o senhor pode saber mais detalhes: https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2018/12/06/homem-de-55-anos-e-preso-suspeito-de-estuprar-bebe-de-1-ano-e-meio-no-am.ghtml

Sabe quem é esse criminoso? É um homem que eu conheci quando era criança, lá no sertão do Pernambuco. Há mais de 20 anos, ele já olhava de forma asquerosa as mulheres que passavam na sua frente. Talvez se visse em um CONTEMPLATÓRIO, mas na verdade estava praticando o crime de assédio. Provavelmente, alguns integrantes da geração a qual o senhor pertence não vejam o que tem de errado em julgar as mulheres pela roupa que elas vestem, mas o mundo (que bom!) evolui.

Quando o senhor escreve atrocidades como “homens, em geral, não avançam na mulher pudorosa, reservada e decentemente ajuizada, que não expõe sua intimidade emocional e física” ou “fechem delegacias das mulheres, providenciem condutas de pudor feminino, vergonhas mais escondidas. Homens, comumente, só avançam se elas abrirem as pernas”, demonstra não apenas que deixou de evoluir com o tempo, como também denuncia a sua ignorância sobre o que acontece com bebês como esse do Amazonas.

O senhor também ignora que em países do Oriente Médio, onde as mulheres vestem burca, os índices de estupro estão entre os maiores do mundo. Mais informações aqui: https://m.huffpostbrasil.com/gabriela-loureiro/aqui-e-a-roupa-curta-la-e-o-rimel-embaixo-da-burca_a_21667722/. Esse é só um exemplo muito simples do quanto o seu artigo é desastroso.

Me sinto no dever de lhe ensinar (nunca é tarde para evoluir) que a mulher nunca é culpada pela agressão, pelo estupro ou pelo assédio que sofre. Os homens “adotam a violência” porque são criminosos, machistas e, veja só, violentos.

Dito isso, tenho uma pergunta a lhe fazer. O senhor diz que “a mulher ideal não precisa exibir as nádegas para seduzir o homem”. Não lhe ocorre que vestimos uma roupa tão somente para nos sentir bem, sem pretensão alguma de agradar o “macho”?

Talvez o que vou dizer agora seja chocante demais para o senhor, mas nossa vida não gira em torno dos homens. Principalmente quando eles são esses tipos medíocres que pensam (às vezes, imagine só, até escrevem) coisas tão aviltantes sobre nós.

Se o senhor acha que “as mulheres devem voltar às origens de sua decência”, eu acho que um homem das letras deveria saber usar as palavras de forma edificante e coerente. Nunca é tarde.

*A jornalista Nayara Felizardo enviou a carta
por e-mail ao senhor José Maria
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Opinião de José Maria Vasconcelos, publicado em um jornal de Teresina, Piauí, em 25 de janeiro de 2019.

Sobre Edwiges Rabello de Lima

Mulher.
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2 respostas para Uma carta ao senhor José Maria

  1. CASSIA GARCIA disse:

    Posicionamento fundamental!! Não podemos permitir que essa concepção preconceituosa e desinformada se perpetue. Há dezenas de estudos que demonstram que a correlação entre estupro e “falta de pudor” é absolutamente inadequada. Minimizar a responsabilidade do agressor e insinuar culpabilidade da vítima é violentá-la uma segunda vez. A esse propósito, valiosa a contribuição da mostra “O que você estava vestindo?” (Bélgica/2018), reportada em “O Globo”. Vale à pena dar uma olhada! https://m.oglobo.globo.com/sociedade/exposicao-com-roupas-de-vitimas-de-estupro-refuta-tese-de-culpa-da-mulher-22288350

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  2. Muito boa sua carta ao sr. José Maria , que escreveu reforçando o discurso que sustenta a cultura do estupro.
    No livro de Djamila Ribeiro, que discutimos neste dia 26, no Encontro do MQLM, tem uma artigo dela com o título “Quando opiniões também matam” (p. 33). Nele ela se refere a comentaristas de televisão e articulistas de jornal que seriam considerados “especialistas em opinião” e exercem a desonestidade intelectual e o desrespeito a quem pesquisa, milita e vivencia as opressões.
    Como bem você disse, a cultura do estupro não depende da roupa que uma mulher veste. E, não esqueçamos, não depende da roupa que os homens, meninos e crianças estuprados vestem.
    No mesmo livro de Djamila, ela escreve sobre a relação entre o racismo e o estupro (p. 116). O projeto colonizador que marcou nossa história é repleto de violência sexual contra mulheres indígenas, negras e, também, brancas que eram trazidas crianças para casar com os colonos. Isso se perpetuou nas Casas Grandes, mas, também nos meios rurais e urbanos como uma coisa “natural”.
    O estupro tem pouquíssimo a ver com sexo e atração pela pessoa e muito mais com poder. Ele é utilizado como forma de humilhação e de subjugação, inclusive praticado em situações de guerra e em instituições em que pessoas vulneráveis estão sob os cuidados de “líderes” ou “cuidadores” ou “mestres”. Exemplos não nos faltam, infelizmente.

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